O artigo aborda as alterações introduzidas pela Medida Provisória n.
665/2014 em cotejo com o ordenamento constitucional brasileiro,
notadamente à luz do princípio da proibição do retrocesso social.
No penúltimo dia do ano de 2014, a Exma. Sra. Presidente da República
adotou, com força de leis, as medidas provisórias (MPV) n. 664 e 665,
as quais, nos dizeres de suas próprias exposições de motivos,
respectivamente, “realizam ajustes necessários nos benefícios da pensão
por morte e auxílio-doença no âmbito do Regime Geral de Previdência
Social (RGPS)” e “modernizam as políticas públicas de emprego
financiadas pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para que este se
torne cada vez mais efetivo no que se refere à preservação do emprego e à
orientação, recolocação e qualificação profissional dos trabalhadores
desempregados”.
Seguro-desemprego
No concreto, em síntese apertada e no dizer da agência de notícias do Senado Federal (
http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/12/31/medida-provisoria-endurece-regras-do-seguro-desemprego),
a MPV 665 “aumenta o rigor para a concessão do abono salarial, do
seguro-desemprego e do seguro-defeso dos pescadores artesanais. Em
relação ao seguro-desemprego, atualmente o trabalhador pode solicitar o
seguro após trabalhar seis meses. Com as novas regras, ele terá que
comprovar vínculo com o empregador por pelo menos 18 meses na primeira
vez em que requerer o benefício. Na segunda solicitação, o período de
carência será 12 meses. A partir do terceiro pedido, a carência voltará a
ser de 6 meses”.
Seguro-Defeso
A temática da concessão do seguro-desemprego do pescador artesanal,
conhecido como seguro-defeso, também foi objeto de alteração prejudicial
pela predita MPV, que passou a proibir o acúmulo de benefícios
assistenciais e previdenciários com o seguro. O benefício de um salário
mínimo é pago aos pescadores que exercem a atividade de forma exclusiva
durante o período em que a pesca é proibida.
Agora, para fazer jus ao benefício, o pescador deverá comprovar uma
carência de três anos a partir da obtenção do registro de pescador,
carência essa que, antes da MPV 665, era de um ano. O beneficiário
também terá que ter contribuído pelo período mínimo de um ano para a
Previdência Social.
Não bastassem tais modificações, a concessão do seguro-defeso não
será extensível às atividades de apoio à pesca, nem aos familiares do
pescador profissional que não satisfaçam os requisitos e as condições
estabelecidos na MPV, como ocorria anteriormente.
E, por derradeiro, o pescador profissional artesanal também não fará
jus a mais de um benefício de seguro-desemprego no mesmo ano decorrente
de defesos relativos a espécies distintas.
Abono Salarial
A famigerada MPV, ainda, estabelece o aumento da carência do tempo de
carteira assinada do trabalhador que tem direito a receber o abono
salarial. Antes, quem trabalhava somente um mês e recebia até dois
salários mínimos tinha acesso ao benefício. Agora, a carência será de,
no mínimo, seis meses ininterruptos.
Afora isso, também modificando a sistemática anterior (o benefício
era pago na íntegra, independentemente do tempo trabalhado), o pagamento
do benefício será proporcional ao tempo trabalhado, do mesmo modo que
ocorre atualmente com o 13º salário.
Justificativa
A título de justificativa, o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio
Mercadante, afirmou que “as medidas são necessárias para o equilíbrio
fiscal do país nos próximos anos e corrigirão distorções na concessão de
benefícios trabalhistas e previdenciários, detectados em auditorias
feitas pelo governo”
[2].
De fato, a exposição de motivos
[3] da MPV 665 advoga no mesmo caminho:
Em 2013, as despesas com abono salarial e seguro desemprego
somaram R$ 31,9 bilhões e R$ 14,7 bilhões, respectivamente. Por sua vez,
a intermediação de mão de obra registrou um investimento de apenas R$
117,2 milhões nesse mesmo período. Diante dessa distorção, fica claro
que tão importante quanto a criação de um programa é o seu redesenho,
afinal de contas, a sua própria efetividade é determinante para que o
público-alvo seja revisto ao longo do tempo. Nesse contexto, torna-se
necessário reduzir as despesas do FAT com políticas passivas para
investir no fortalecimento das políticas ativas, pois estas têm impacto
direto no aumento da produtividade do trabalhador e da economia, o que
gera maiores ganhos de bem-estar para toda a população no longo prazo.
E no que pertine com o seguro-defeso:
Por fim, esta medida provisória também faz alterações no
seguro-desemprego destinado aos pescadores artesanais em período de
defeso. O objetivo é tornar mais claro o enquadramento para fins de
concessão do benefício pecuniário, diferenciando aqueles que vivem
exclusivamente da pesca daqueles que exercem outras atividades
profissionais.
Sucede, todavia, que, abstraída a celeuma em torno do
(des)atendimento,
pela MPV, dos pressupostos de relevância e urgência – mérito que daria
origem a estudo ainda mais amplo, do que não se ocupará aqui (o que,
todavia, não desautoriza apontamento acerca da absoluta debilidade da
exposição de motivos da MPV quanto ao tema
[4]
–, todo ato normativo precisa guardar compatibilidade pelo menos
material com a constituição da República; é assim com as leis em sentido
estrito, o deve ser com as MPV, no Brasil, manejadas como simulacro das
primeiras.
De efeito, no mundo empírico da MPV 665, não há convergência material
com a carta constitucional, notadamente porque, comprimindo direitos
fundamentais trabalhistas – guindados, inclusive, ao núcleo intangível
da Constituição (cláusulas pétreas) –, afronta o princípio da proibição
do retrocesso social.
Princípio da proibição do retrocesso social
Num cenário ideal, o dirigismo constitucional inaugurado com a Carta
de 1988 conduziria, na temática da concretização dos direitos sociais, a
uma promoção quase que automática desses últimos (políticas públicas
tendentes a eficacizá-los), ainda mais considerando o teor do § 1º do
art. 5º da CF/88.
O que se verificou, todavia, passados 26 anos da promulgação da
“constituição cidadã”, foi um moroso movimento do Estado na
regulamentação e na criação das políticas públicas aptas a tornarem
efetivos os direitos fundamentais (dentre os quais os sociais, por
óbvio). Importa, entretanto, que esse andar, embora lento e hesitante,
seja contínuo e progressivo. Vale dizer, mais importante do que o ímpeto
e a velocidade da criação e implementação das políticas públicas é a
garantia de que não haja recuo.
O princípio da proibição do retrocesso social é embrião da “teoria da irreversibilidade”, articulada por Konrad Hesse, em 1978:
A Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibilidade,
desenvolvida por Konrad Hesse, partiria da afirmação de que não se pode
induzir o conteúdo substantivo da vinculação social do Estado
diretamente da Constituição, mas uma vez produzidas as regulações, uma
vez realizada a conformação legal ou regulamentar deste princípio, as
medidas regressivas afetadoras destas regulações seriam
inconstitucionais, ou seja, haveria uma irreversibilidade das conquistas
sociais alcançadas. (NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O princípio de
proibição de retrocesso social. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010, p. 101-102).
Especificamente no ordenamento constitucional brasileiro, o princípio
da proibição do retrocesso social repousa implícito na assunção do
estado de direito democrático e na própria cláusula da dignidade da
pessoa (art. 1º, caput e inc. III, da CF/88). Ainda, no
entender deste advogado, também o comando da maximização da eficácia das
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (§ 1º do art.
5º da CF/88) alberga, materialmente, o predito princípio proibitivo do
recuo social.
Então, em matéria de concretização de direitos fundamentais, se há um
mandamento constitucional ao progresso e máxima eficacização (§ 1º do
art. 5º da CF/88), há, por consequência lógica, a proibição do
retrocesso, assim entendida, na hipótese vertente, a criação de óbices à
fruição de determinados direitos sociais, por meio de novel regulamento
sobremodo restritivo.
O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, aferiu a
aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso, sendo relevante
trazer à colação o excerto seguinte, extraído do voto da ministra Cármen
Lúcia no julgamento da ADI 4543-MC/DF
[5]:
Esse princípio da proibição de retrocesso político há de ser
aplicado tal como se dá quanto aos direitos sociais, vale dizer, nas
palavras de Canotilho “uma vez obtido um determinado grau de realização,
passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um
direito subjetivo. ...o princípio em análise limite a reversibilidade
dos direitos adquiridos em clara violação do princípio da proteção da
confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e
cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao
respeito pela dignidade da pessoa humana” (CANOTILHO, J.J. Gomes –
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 3ª.
Ed., p. 326).
De igual modo, no julgamento do ARE 639337 AgR/SP
[6], o ministro-relator Celso de Mello fez constar:
O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de
direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as
conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele
vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a
prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à
saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de
efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos,
obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma
vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo
Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver
reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de
torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao
texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante
supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados.
Conseguintemente, as alterações introduzidas pela MPV 665 vulneram os
níveis de concretizações anteriores dos direitos ao seguro-desemprego,
seguro-defeso e abono salarial.
Com efeito, ao impor embaraços à fruição desses direitos, não está a
MPV em comento simplesmente alterando a regulamentação dos acessos às
benesses; está, isto, sim, reduzindo e restringindo a via condutora às
precitadas políticas de amparo social (estreitando a porta). Por
consequência, resulta comprimido o núcleo do direito social que os
ampara (art. 7º, inc. II, da CF/88).
Poder-se-ia, no ponto, contra argumentar que afronta ao princípio da
proibição do retrocesso social haveria se a MPV 665 suprimisse o
direito. Um argumento que tal não se sustenta, ao menos, por duas
razões.
A uma, porque medida provisória sequer poderia versar sobre o assunto
(supressão), visto que até ao poder constituinte reformador há óbice
nesse sentido (emenda à constituição – proibição do art. 60, § 4º, inc.
IV, da CF/88).
A duas, porque o princípio da proibição do retrocesso social não
ampara apenas a manutenção do direito, mas requer também a abstenção de
compressão do seu núcleo essencial.
Convenha-se, em conclusão, que regulamentação que triplique o período
de carência do primeiro pedido de seguro-desemprego ou que substitua a
integralidade do abono salarial pela proporcionalidade ao tempo
trabalhado, sem decente justificativa jurídica (“equilíbrio fiscal do
país” não pode custar a perda de direitos) e ausente diálogo
institucional com o Congresso Nacional – o que se suporia, na hipótese
de um projeto de lei –, efetivamente comprime o núcleo essencial dos
direitos.
Nesse andar, impõe-se como medida de justiça e rigor jurídico a
conclusão de que a MPV 665, por ofender o princípio da proibição do
retrocesso social, é inconstitucional, visto que ultraja, por via de
consequência e em última análise, a Constituição da República.
Até, portanto, o final da vacatio legis definida na própria
MPV 665 (entra em vigor no dia 28.02.2015, no que tange às alterações
feitas nos requisitos e duração do seguro-desemprego (arts. 3º e 4º da
Lei nº 7.998/90), e no dia 01.04.2015, quanto às alterações no
seguro-defeso), seria salutar que o Poder Executivo, pelos ministros que
firmaram a ignóbil exposição de motivos, a reconsiderasse.
Uma tal capitulação, longe de definir fraqueza, teria o efeito de
sinalizar que o Poder Executivo se apercebeu do signo que persegue a MPV
665 desde a adoção, a saber, a completa ausência, por seus mentores e
redatores, de conhecimento jurídico-constitucional, corrigindo-o.
E corrigir-se significa crescer, evoluir. Aliás, na hipótese,
significaria dar vida a um outro princípio, orientador da atividade
administrativa, o da eficiência.
[4] “9. A urgência da medida caracteriza-se pela evidente necessidade
de adequar o FAT para que esse tenha assegurada a sua sustentabilidade
financeira intertemporal. 10. Essas são, Senhora Presidenta, as razões
que justificam a elaboração da minuta de Medida Provisória que ora
submetemos à elevada apreciação de Vossa Excelência.”